Pra quem nunca foi a
Buenos Aires explico que um ‘kiosco’ é uma lojinha, geralmente pequenininha, às
vezes só uma porta ou uma janela que dá pra a calçada, onde se vendem – além de
cigarros – chicletes, balas, bombons, chocolates e todas essas coisas que
crianças e adolescentes adoram. Em Buenos Aires há ainda milhares deles. Tenho
a impressão de que quando eu era adolescente havia mais. Mas sempre tem uma
criança por ali pedindo um chiclete ou um chocolate.
Eu tenho lá na
Argentina um primo que quando a gente tinha uns quinze anos era tido na família
como pão duro. E era mesmo. Além de pão duro ele pensava demais em dinheiro.
Sabe aquela pessoa que sempre faz a conta antes de ir a qualquer lugar, a
qualquer programa? Então, era ele. Muitas vezes eu tinha que pagar com a minha
mísera mesada só pra ele não deixar de nos acompanhar ao cinema ou aonde fosse.
E ele vivia dizendo coisas muito engraçadas sobre como ganhar dinheiro quando
crescesse.
Teve uma que ficou
antológica e que matou a gente de rir por muito tempo. Ele disse:
“¡Ya sé cómo hacerme rico! Voy a poner un
kiosco cerca de todos los colegios...
Lo difícil va a ser juntar todos los
colegios.”
Fazendo uma pequena
adaptação e trazendo pra a nossa cultura, só pra fazer mais sentido, seria algo
assim:
“Já sei como é que eu
vou ficar rico! Vou colocar um carrinho de pipoca perto de todos os cinemas...
Difícil vai ser juntar
os cinemas todos.”
Mas por que eu tô
falando dessa história?
Porque essa anedota de
adolescente parece ter virado a realidade do capitalismo atual, que se já era
absurdamente desumano, tá ficando infernal.
A divulgação de que
124 pessoas detêm o correspondente a 12% do PIB do Brasil, escancara uma
situação insustentável.
Se fôssemos brincar de
matemática corresponderia dizer que, pra essa situação ser absolutamente justa,
isonômica, equânime, o país teria que ter mil habitantes.
Se o país tivesse 10
mil habitantes já haveria uma injustiça – tolerável talvez.
Havendo 100 mil
habitantes essa injustiça já deixaria de ser tão tolerável.
Com um milhão de
habitantes no país já não haveria como aceitar que 124 pessoas detivessem 12%
da riqueza. Seria desigual demais. A posse dessa riqueza por tão pouca gente
certamente geraria níveis de pobreza inaceitáveis em parte importante da
população.
Já no caso do país ter
200 milhões de habitantes é preciso que cada um reflita sobre o que isso
significa.
É assim que o
capitalismo neoliberal tem funcionado. Esqueceram todas as teses da origem do
sistema. Teses que, é bom lembrar, já admitiam um sistema muito desigual, mas
cuja justiça mínima seria garantida pelos próprios atores sociais. Se essas
teorias já eram falaciosas, o que dizer do desenvolvimento delas que nos trouxe
até esta situação? Jogaram até o Adam Smith e o Montesquieu no lixo. A
competição foi substituída pelo monopólio. Ou pelo oligopólio. A mão invisível
do mercado é, hoje, a mão leve da corrupção corporativa. O avanço tecnológico
não deriva do ‘self-interest’, mas do contrabando e roubo de tecnologia, ainda
produzida em larga escala dentro de universidades estatais. Não há ética em um
ambiente onde o lucro a qualquer preço é o objetivo único. A reserva de mercado
é instrumento recorrente.
Os laboratórios farmacêuticos,
aliados às seguradoras de saúde e com os doutores como embaixadores nos
mostraram isso recentemente.
No Brasil há,
atualmente e na prática, cinco bancos. E dois são públicos. Cada brasileiro que
sai da invisibilidade econômica - devido a práticas socialdemocratas - encontra
uma opção nula de onde abrir uma conta - devido a práticas neoliberais.
Cada brasileiro que
consegue ter uma sobra no orçamento pra fazer um churrasquinho e tomar uma
cerveja se submete a um mercado em que 98% pertencem a quatro cervejarias, que
põe à nossa disposição o mesmo tipo de cerveja.
Cada brasileiro que
consegue comprar um telefone celular encontra quatro operadoras pra escolher
qual vai roubá-lo durante alguns anos.
Quase a totalidade da
mídia é dominada por 5 famílias. Não há mais do que seis ou sete canais de tv
aberta. Todos com o mesmíssimo lixo cultural, a mesma opinião travestida de
informação, a mesma visão preconceituosa da nossa sociedade que só corresponde
à elite.
E essa situação que
beira o ridículo não é privilégio do capitalismo tupiniquim, ainda que aqui
pareça mais assustador. A verdade é que o neoliberalismo internacional
determinou, entre outras coisas, que, primeiro, um continente inteiro ficasse
de fora da distribuição da riqueza internacional, depois contingentes enormes
no terceiro mundo também, e, mais recentemente, países do próprio grupo de
elite entrassem na fila da sopa. Sopa essa cujos ingredientes são produzidos
pelos que estão na fila.
Foi isso que fizeram.
Transformaram a piada de um garoto de 15 anos em realidade defendida por
milhões de - pasmem - adultos.
Não se deram nem
sequer ao trabalho de... trabalhar.
Nem aquela velha
história do esforço individual e empreendedor recompensado levam em conta. Não.
Trabalhar não. Colocar vários carrinhos de pipoca em cada cinema, e que venda
mais a pipoca mais gostosa, nem pensar. Colocar alguns kioscos perto de cada
colégio, e que venda mais o que tiver melhor preço, nunca.
Fizeram aquilo que 30
anos atrás nos fazia dar gargalhadas.
Juntaram os kioscos!
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