quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Xadrez



Imagina a seguinte situação:
Seus pais são casados em segundas núpcias. Tanto seu pai como sua mãe tinham filhos dos casamentos anteriores – seus irmãos e irmãs. Os dois são muito bem sucedidos e são muito felizes porque moram todos juntos: seus pais, seus irmãos de ambos os lados e você, em uma mansão maravilhosa. Seu pai ama a sua mãe e depende muito dela. Ela é louca pelo seu pai e não imagina a vida sem ele. Você também é muito feliz e ama seus pais, adora essa casa e todos os seus irmãos.
Sua mãe e seu pai têm uma paixão em comum: o xadrez. Eles passam horas jogando, estudam o jogo e, inteligentes que são, viraram os melhores jogadores de xadrez da cidade. Quando seu pai ganha da sua mãe ele fica orgulhoso por ter vencido uma expert. E quando ela ganha é a mesma coisa. A paixão deles foi herdada por todos. Todo mundo na casa adora xadrez. Você também. Mas você sabe que é só um jogo. Um jogo fascinante, mas só um jogo.
Vizinhos invejosos, dispostos a atrapalhar toda aquela felicidade, perceberam que podiam colocar seus irmãos uns contra os outros com base no xadrez. De tanto insuflarem os filhos do seu pai contra os filhos da sua mãe e vice-versa, conseguiram que alguns dos seus irmãos começassem pequenas brigas dentro de casa. Você chegou a escutar os seus irmãos por parte de pai xingando os seus irmãos por parte de mãe e dizendo que ele jogava melhor que ela e que havia ganhado mais vezes. Os seus irmãos por parte de mãe ficavam chateados e respondiam na mesma moeda.
Seus vizinhos tentaram o mesmo com você. Tentaram fazer você escolher um lado. Só que pra você aquela briga não fazia o menor sentido. Aquilo tudo parecia absurdo. Gente que se ama, que se precisa e que se admira brigando por causa de um jogo? Não. Com você não. Você é muito maior que isso. Você sabe que o jogo acaba e todos têm que morar na mesma casa. E precisam continuar sendo felizes.
Seu desafio, pois, é convencer os dois lados disso.

Corrupção ou trânsito?

Para o pessoal que acordou outro dia e ontem resolveu tomar vergonha.

A elite brasileira e a sua fiel escudeira, a classe média, tem uma relação muito engraçada com duas coisas que são temas constantes nas discussões sobre a sociedade moderna - a corrupção e o trânsito.
No tema trânsito é assim:
A moça posta no tuíter ou no feicibuqui, parada no engarrafamento que ela mesma criou, qualquer tipo de impropérios sobre o tal ‘trânsito’. E enquanto posta fecha o cruzamento aumentando o engarrafamento que ela já tinha criado. E - burra, coitada - não para pra pensar que ela foi a principal causadora de tudo quando preferiu sair de casa sozinha, em um carro que pesa mais de uma tonelada e joga no ar três toneladas de dióxido de carbono por ano. Ela não quis ir a pé. Não quis tomar um ônibus, um metrô ou, pelo menos, um taxi. Não quis negociar com os colegas uma carona. Ela quis ir no seu carro, seu símbolo de poder, sua segurança social, seu maior orgulho. Também não pensou em um horário alternativo. E agora tá fula da vida porque, tendo tido a mesma ideia estúpida que outros milhares como ela, juntos produziram essa situação. Aí você pensa: mas ela pode aprender e amanhã fazer diferente. Mas não. Amanhã ela faz exatamente a mesma coisa como se esperasse que todos os outros desaparecessem pra que a vida dela fosse perfeita. E tome xingamento nas redes sociais!
Na corrupção é assim:
O cara trabalha em uma empresa e sabe que essa empresa usa de todos os artifícios ilegais para aumentar a lucratividade. Isso quando não é o dono dela. Ele acha tudo aquilo normal. Isso é assim mesmo. Reclamar? Só se ele fosse doido! Segue nessa linha durante a carreira toda, afinal de contas todas as empresas são assim. No começo do ano recorre a muitos daqueles artifícios manjados pra sonegar imposto de renda. Durante o ano recebe uma proposta melhor de outra empresa – mais corrupta ainda – e troca de emprego. Mas, na empresa nova, pede pra só assinarem a carteira dele daqui a alguns meses pra poder receber seguro desemprego. Depois, ele e a empresa acabam chegando à conclusão de que se ele for contratado como pessoa jurídica - embora seja, obviamente, pessoa física - ambos saem ganhando. E fingem que ninguém sai perdendo, que é um problema entre eles e que o Estado Democrático de Direito não existe. No fim de semana ele é convidado pra ir à festa na mansão daquele amigo dono de uma firma que presta serviços superfaturados para a prefeitura. Tem muito orgulho desse amigo que venceu na vida! Posta fotos da festa pra todo mundo saber que ele estava lá. Durante a semana ele leva um cliente pra jantar e oferece um suborno. E como é por conta da empresa sai do restaurante com uma notinha de valor um pouco acima do consumido. No taxi a mesma coisa. Aí de noite ele se senta na frente da televisão e, vendo o jornal nacional, grita: Sarney ladrão!
Curiosamente, nos dois assuntos eles consideram, com uma cara de pau incrível, que só o outro é responsável pelo problema quando a realidade é exatamente inversa.
A conclusão inevitável é a de que para o representante típico da elite/classe-média:
Trânsito é um monte de carros. Menos o meu.
Corrupção é coisa de bandido. Menos a minha.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

124 pessoas = 12 %



Pra quem nunca foi a Buenos Aires explico que um ‘kiosco’ é uma lojinha, geralmente pequenininha, às vezes só uma porta ou uma janela que dá pra a calçada, onde se vendem – além de cigarros – chicletes, balas, bombons, chocolates e todas essas coisas que crianças e adolescentes adoram. Em Buenos Aires há ainda milhares deles. Tenho a impressão de que quando eu era adolescente havia mais. Mas sempre tem uma criança por ali pedindo um chiclete ou um chocolate.
Eu tenho lá na Argentina um primo que quando a gente tinha uns quinze anos era tido na família como pão duro. E era mesmo. Além de pão duro ele pensava demais em dinheiro. Sabe aquela pessoa que sempre faz a conta antes de ir a qualquer lugar, a qualquer programa? Então, era ele. Muitas vezes eu tinha que pagar com a minha mísera mesada só pra ele não deixar de nos acompanhar ao cinema ou aonde fosse. E ele vivia dizendo coisas muito engraçadas sobre como ganhar dinheiro quando crescesse.
Teve uma que ficou antológica e que matou a gente de rir por muito tempo. Ele disse:
“¡Ya sé cómo hacerme rico! Voy a poner un kiosco cerca de todos los colegios...
Lo difícil va a ser juntar todos los colegios.”    
Fazendo uma pequena adaptação e trazendo pra a nossa cultura, só pra fazer mais sentido, seria algo assim:
“Já sei como é que eu vou ficar rico! Vou colocar um carrinho de pipoca perto de todos os cinemas...
Difícil vai ser juntar os cinemas todos.”
Mas por que eu tô falando dessa história?
Porque essa anedota de adolescente parece ter virado a realidade do capitalismo atual, que se já era absurdamente desumano, tá ficando infernal.
A divulgação de que 124 pessoas detêm o correspondente a 12% do PIB do Brasil, escancara uma situação insustentável.
Se fôssemos brincar de matemática corresponderia dizer que, pra essa situação ser absolutamente justa, isonômica, equânime, o país teria que ter mil habitantes.
Se o país tivesse 10 mil habitantes já haveria uma injustiça – tolerável talvez.
Havendo 100 mil habitantes essa injustiça já deixaria de ser tão tolerável.
Com um milhão de habitantes no país já não haveria como aceitar que 124 pessoas detivessem 12% da riqueza. Seria desigual demais. A posse dessa riqueza por tão pouca gente certamente geraria níveis de pobreza inaceitáveis em parte importante da população.
Já no caso do país ter 200 milhões de habitantes é preciso que cada um reflita sobre o que isso significa. 
É assim que o capitalismo neoliberal tem funcionado. Esqueceram todas as teses da origem do sistema. Teses que, é bom lembrar, já admitiam um sistema muito desigual, mas cuja justiça mínima seria garantida pelos próprios atores sociais. Se essas teorias já eram falaciosas, o que dizer do desenvolvimento delas que nos trouxe até esta situação? Jogaram até o Adam Smith e o Montesquieu no lixo. A competição foi substituída pelo monopólio. Ou pelo oligopólio. A mão invisível do mercado é, hoje, a mão leve da corrupção corporativa. O avanço tecnológico não deriva do ‘self-interest’, mas do contrabando e roubo de tecnologia, ainda produzida em larga escala dentro de universidades estatais. Não há ética em um ambiente onde o lucro a qualquer preço é o objetivo único. A reserva de mercado é instrumento recorrente.
Os laboratórios farmacêuticos, aliados às seguradoras de saúde e com os doutores como embaixadores nos mostraram isso recentemente.
No Brasil há, atualmente e na prática, cinco bancos. E dois são públicos. Cada brasileiro que sai da invisibilidade econômica - devido a práticas socialdemocratas - encontra uma opção nula de onde abrir uma conta - devido a práticas neoliberais.
Cada brasileiro que consegue ter uma sobra no orçamento pra fazer um churrasquinho e tomar uma cerveja se submete a um mercado em que 98% pertencem a quatro cervejarias, que põe à nossa disposição o mesmo tipo de cerveja.
Cada brasileiro que consegue comprar um telefone celular encontra quatro operadoras pra escolher qual vai roubá-lo durante alguns anos.
Quase a totalidade da mídia é dominada por 5 famílias. Não há mais do que seis ou sete canais de tv aberta. Todos com o mesmíssimo lixo cultural, a mesma opinião travestida de informação, a mesma visão preconceituosa da nossa sociedade que só corresponde à elite. 
E essa situação que beira o ridículo não é privilégio do capitalismo tupiniquim, ainda que aqui pareça mais assustador. A verdade é que o neoliberalismo internacional determinou, entre outras coisas, que, primeiro, um continente inteiro ficasse de fora da distribuição da riqueza internacional, depois contingentes enormes no terceiro mundo também, e, mais recentemente, países do próprio grupo de elite entrassem na fila da sopa. Sopa essa cujos ingredientes são produzidos pelos que estão na fila.
Foi isso que fizeram. Transformaram a piada de um garoto de 15 anos em realidade defendida por milhões de - pasmem - adultos.
Não se deram nem sequer ao trabalho de... trabalhar.
Nem aquela velha história do esforço individual e empreendedor recompensado levam em conta. Não. Trabalhar não. Colocar vários carrinhos de pipoca em cada cinema, e que venda mais a pipoca mais gostosa, nem pensar. Colocar alguns kioscos perto de cada colégio, e que venda mais o que tiver melhor preço, nunca.
Fizeram aquilo que 30 anos atrás nos fazia dar gargalhadas.
Juntaram os kioscos!

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Elite?


Eu tô meio indignado com algumas coisas que vêm ocorrendo no Brasil. Mas não pensem que eu vou reclamar – igual a um monte de inocentes úteis – da corrupção na política. Esse é o menor dos nossos males e deriva da corrupção intrínseca da nossa elite. Não sei qual é o maior dos nossos males, mas provavelmente a qualidade dessa elite é um deles.
É disso que quero falar.
O caso da repulsa aos programas sociais do governo já virou crônico, quase anedotário. O mesmo com qualquer tipo de ação afirmativa. Tudo que tenda à democratização do acesso é imediatamente bombardeado com argumentos ridículos. Já escutei até de uma moça loira o seguinte: “não devo historicamente nada para os negros, eu nunca tive escravos”. E por aí vai.
Essa história dos médicos, além de umas outras aí, tem me irritado muito.
Como é que pode uma pessoa que teve de tudo na vida, que nunca passou por nenhuma necessidade, que foi bancada até quase os trinta anos de idade pelos pais, ser tão vil? De onde vem esse desprezo tão desumano por outras pessoas, pelo povo?
Seria normal ver maldade em alguém cuja vida tivesse deixado cicatrizes incuráveis, uma vida cheia de humilhações, pobreza, violência, etc. Mas de quem sempre teve do bom e do melhor é absurdo, né? Pois é, não. É o mais normal, infelizmente. Entre o filhinho de papai e o filho do trabalhador é mais fácil encontrar generosidade, solidariedade, responsabilidade, docilidade, senso de coletividade e respeito à coisa pública no segundo do que no primeiro. Por isso é que falo do problema da qualidade da nossa elite.
Pra começar, o fato é que se trata de uma elite social e não intelectual ou cultural. Os mesmos que chamam de ignorantes a grande massa de trabalhadores do país não tem nível cultural que os faça diferentes. A enorme maioria das pessoas que, olhando do alto das suas posses, desdenha da educação formal – ou da falta dela – do povo não lê nem sequer um livro por ano, não vai ao teatro, não frequenta museus, não conhece arte, nem história, nem geografia, nem idiomas. E só se informa na rede globo e na veja. Além disso, não tem capacidade crítica pra compreender nem sequer a divisão de poderes, mais ou menos à la Montesquieu, que se adotou no Brasil e em boa parte do mundo.
Não quero aqui discutir questões classistas. É claro que a luta de classes está presente em tudo e, mais ainda, no que está ocorrendo em toda a América Latina. Mas o que eu quero frisar é a baixíssima qualidade das nossas elites. São tão fracos intelectualmente, politicamente, culturalmente, que nem com todos os instrumentos que têm, e sempre tiveram, conseguem administrar a fatia do poder que gostariam. Com todo o aparato da informação que acumularam ainda não conseguem ser convincentes. E mais, usaram tão mal alguns instrumentos - como os meios de comunicação - que lhes tiraram boa parte da credibilidade: qualquer um com três neurônios procura verificar a informação que lhe chega via mídia corporativa. Os médicos agora estão tentando estragar a reputação das associações que os representam. E estão conseguindo. Já é comum escutar nas mesas de bar que os crm ou o cfm só se preocupam com questões corporativas e estão cantando e andando para o povo. A oab, em alguns estados, trilha caminho semelhante.
Agora apareceu outra prova da falta de categoria dessa nossa elitezinha.
Vai um sujeito, chefe de um dos poderes da república (já falei da dificuldade que é explicar isso), receber, junto a outra chefe de outro poder da república, um terceiro chefe – nesse caso de um estado e de uma religião. Aquele primeiro resolve negar o cumprimento à segunda. O quê que a elite engomada, coxinha, insensível e inculta acha do caso? Lindo! Bem feito! Foi é pouco!
Modos, cortesia, gentileza, cordialidade, que seriam de se esperar de quem sempre esteve socialmente por cima, não existem. A altivez com que eles querem ser retratados desaparece imediatamente diante da oportunidade de fustigar quem não lhes cai bem.
Ah, faça-me o favor! Grosseria pior do que essa nem os trabalhadores braçais mais humildes que a elite despreza cometem no seu dia a dia.
Se você é desses da elite e tá a fim de exercer seu direito de ser canalha, de espernear porque um governo quer dar comida com um mínimo de educação pra a população que precisa, saúde para os habitantes dos rincões mais longínquos, dignidade para aqueles que você despreza – ou ignora -, eu recomendo que você comece a se aprimorar na arte da aristocracia. Melhore seus modos, nas redes sociais e no trânsito. Aprimore sua etiqueta no trato pessoal. Adquira alguma cultura. Pode começar pelo Pequeno Príncipe mesmo.

domingo, 5 de agosto de 2012

Neocons


Eu tava lendo, conversando e pensando sobre os neoconservadores*. Cheguei a uma conclusão curiosa.
Eles têm muita certeza sobre tudo que pensam, mas usam uma lógica estranha.
·       Os neoconservadores são contra qualquer interferência de governos na economia. Eles acham que governos não têm que “se meter” em questões de produção e comércio, acham que o mercado resolve tudo de boa maneira.
·       Eles são contra políticas afirmativas, cotas raciais ou sociais, etc. Consideram que a meritocracia e o mercado devem prevalecer.
·       Os neoconservadores, em sua maioria, são contra, também, políticas públicas de renda mínima ou de segurança alimentar, às quais chamam assistencialismo, como o bolsa-família. Eles pensam que o sistema se adequará e aos poucos incluirá a todos. Sem interferências governamentais.
·       Da mesma forma combatem programas públicos de moradia.
·       Eles também são contra a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Acham que deveria haver leis que a proíbam.
Vamos resumir e tentar entender:
·       Quem produz, quem vende e quem compra o quê não são da alçada do Estado. São assuntos PRIVADOS.
·       Dar oportunidades aos humildes e explorados historicamente de melhorar de vida por meio da educação não é responsabilidade do Estado. É um assunto PRIVADO.
·       Garantir a subsistência de famílias, garantir que suas crianças não morram de fome não é obrigação dos Estados. É um assunto PRIVADO.
·       Dar a certeza e a dignidade da moradia à sua população não é dever do Estado. É mais um assunto PRIVADO.
·       Quem ama quem, quem vai morar com quem, quem vai dividir a vida com quem. Esse é um assunto em que o Estado deve interferir. Esse assunto é, para os neoconservadores, PÚBLICO!

* Eufemismo para a atual direita nativa.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A Dama(?) de Ferro

Vi ontem o filme “A Dama de Ferro”.
Embora soubesse que iam tentar passar nela um verniz de humanidade, o que é, de certa forma, natural, consegui ver o filme todo mantendo a visão crítica de que aquilo é um monstro.
Eu acho até aceitável que se tente perdoá-la, agora que ficou velha e doente. Mas é bom lembrar que as Margarets também envelhecem.
Para um filme que mostra só um ponto de vista – a neutralidade não existe em política – até que conseguiram não santificar aquela coisa autoritária, direitista, insensível e injusta que caracteriza os líderes que, ao lado da Thatcher, trouxeram definitivamente para o mundo a ideologia neoliberal cujo resultado todos, inclusive o Reino Unido, conhecem.
A melhor parte é a Meryl Streep.
A questão feminina também atrai, mas, cuidado!
É, guardadas as devidas proporções, como colocar o Dustin Hoffman pra fazer a biografia do Hitler. Vai dar vontade de entender as razões dele. No entanto, temos a obrigação de resistir.